quarta-feira, 6 de julho de 2011

Hereditariedade e a nossa desresponsabilização

Instigado pela pergunta de Patrícia Belisário (doutora em assuntos da vida), e contando com a crítica apurada de Neuza Alves (leitora assídua), trago aqui apontamentos sobre o modo como o ser humano se aproveita do fator hereditário e do discurso da ciência para conduzir de forma negligente os problemas e adoecimentos, em especial, os de ordem psíquica.
Atualmente, a postura que algumas pessoas adotam diante de seus problemas de comportamento e conflitos de personalidade, tem sido regida pela não responsabilização ou tentativa de não implicação, como se contra uma força genética ou de hereditariedade nada fosse possível fazer. Vale lembrar que a hereditariedade para a Psicanálise leva em conta a criação que recebemos, isto é, transmissão de valores, interpretações e posturas de vida, que vão além dos códigos genéticos. Além disso, a Psicanálise caminha de modo à pessoa assumir o próprio papel diante de sua carga hereditária, tomando para si a responsabilidade por seu modo de ser, viver e se comportar, mesmo que algo escape de sua consciência e razão.
Sabemos da relação que existe entre a carga biológica com a qual nascemos e a modificação que sofremos por conta das influências do meio. Somos produto do gene ou do meio? A interação destes dois pontos é inegável, mas isso não exclui o peso de nossas escolhas e as consequências que extraímos de nossas próprias decisões.
A isenção de responsabilidade que vivemos atualmente e a supervalorização do fator hereditário, promovendo uma negligência no modo como passamos a encarar nossas falhas, erros e adoecimentos, traz um problema gravíssimo: aprendemos a colocar a culpa nos ancestrais ou naquilo que trazemos deles no DNA. Seja para um adoecimento orgânico, seja para um modo de comportamento estranho e doentio, a tendência atual é justificarmos pela via da força genética ou de criação do meio, forças encaradas como impossíveis de serem mudadas.
Para o problema da agressividade ou do alcoolismo, por exemplo, muitos se justificam nos traços de família, como se contra isso nada pudesse ser feito, a não ser aceitar calado.
Estamos pagando um preço por transportarmos para os outros (pais, professores, e até mesmo a ciência) uma responsabilidade que é de cada um. A tendência em não mudar a acomodação no desprazer e a compulsão à repetição faz com que mais e mais pessoas deixem de se apoderar dos próprios problemas, e passem a conduzir a vida de modo negligente.
Espera-se muito da ciência. Confia-se muito nos laboratórios. Porém, na vida íntima, no cotidiano particular de cada um, pouco se faz para mudar. Raramente assumimos nossas falhas, faltas, e sempre achamos alguém para culpar, no caso aqui, sobrou até para as nossas gerações passadas.
Implicar-se naquilo que você faz, mesmo que não consiga, ainda, entender por que é que você faz; assumir que isso é seu e não da hereditariedade (como se fosse algo distante ou fora de seu alcance); e se implicar naquilo que age em você é uma forma de dar direções diferentes para isso que já vem se repetindo muito antes de você nascer.

4 comentários:

  1. Muito bacana esse tema, Thales. Outro dia eu estava vendo Oprah e aquela transexual (aguardando cirurgia ainda), a Lea T, insistia em dizer que a sua "condição" era um "distúrbio" e estava no seu cérebro. Independentemente das controvérsias que envolvem a formação da nossa identidade - cientistas e psicanalistas discordam neste ponto né -, o que me pareceu é que ela tentava tirar de si algo que é tão dela, e colocar na ciência, nos neurônios, nas sinapses, a responsabilidade por ser "mulher num corpo de homem". Me soou bem estranho, e inclusive é um discurso diferente do que costumamos ouvir dos transgêneros em geral. Enfim, um exemplo de como podemos colocar fora o que é nosso, em essência.

    ResponderExcluir
  2. Renata,
    a essência do artigo é polemizar o fato das pessoas insistirem na negação daquilo que é delas. O exemplo trazido por você diz deste impasse do ser humano. A vida na ignorância é menos árdua, porém é mais débil.
    Valeu pela presença! Continue por aqui!

    ResponderExcluir
  3. Atualmente vejo essa negação de responsabilidade não só recorrendo à hereditariedade, mas a problemas sociais/econômicos. As justificativas para a incapacidade de resolver algum problema geralmente se baseiam nesse artifício de colocar a causa em outro lugar, geralmente em algum lugar que seja inacessível ao sujeito que se queixa. Boa reflexão, é um tema que sempre aparece nos consultórios.

    ResponderExcluir
  4. Realmente Marcus, as resistências aparecem de várias formas nos atendimentos, e podem vir disfarçadas sob esse discurso de que algo se passa além do alcance do sujeito.

    ResponderExcluir